domingo, 7 de dezembro de 2014

Tiago x Paulo: rivais?

Um ponto que parece confundir muitos cristãos é a questão da justificação. Atualmente parece consenso de que a justificação é pela fé somente mas quando chegamos na carta de Tiago capítulo 2 vemos que o homem também é justificado pelas obras. Será então que há um equilíbrio entre as duas? Esse tipo de desconhecimento da Palavra chega a levar pessoas a afirmarem em pregação que Tiago pregou contra Paulo.

“Onde está logo a jactância? Foi excluída. Por que lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei.” Romanos 3:23

“Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé.” Tiago 2:24

Algo que costuma ser ignorado é a consulta do idioma grego. No grego, a palavra justificação é “Dikaioo” que têm 2 significados: atribuir justiça e mostrar-se justo. [1] Esse entendimento será vital para entendermos o equilíbrio dessa questão.

Em romanos capítulo 4, Paulo usa o exemplo de Abraão para fundamentar seu argumento de justificação pela fé somente:

“Que diremos, pois, ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne?
Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.

Ora, ao que trabalha não se lhe conta a recompensa como dádiva, mas sim como dívida;
porém ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça; assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus atribui a justiça sem as obras, dizendo:Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos.Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputará o pecado.” Romanos 4:1-8

Aqui a palavra “Dikaioo” aparece em seu primeiro sentido: atribuir justiça. Mesmo sendo somente uma palavra, sabemos o seu sentido por causa do contexto que a envolve; seria impossível aqui Dikaioo ser "mostrou-se justo."

“Mas queres saber, ó homem insensato, que a fé sem as obras é inútil?
Porventura não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi justificado quando ofereceu sobre o altar seu filho Isaque? Vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada.
E se cumpriu a escritura que diz: E creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça, e foi chamado amigo de Deus.Vedes então que é pelas obras que o homem é justificado, e não somente pela fé. E de igual modo não foi a meretriz Raabe também justificada pelas obras, quando acolheu os espias, e os fez sair por outro caminho?
Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta.” Tiago 2:20-26

Aqui a palavra “Dikaioo” (justificação) entra no segundo sentido, pois o contexto fala de algo prático, algo que foi feito, e não algo que outro fez por Abraão.

Então chegamos ao sentido cronológico da coisa para a correta harmonização: No exemplo de Paulo em Romanos 4, Abraão ainda não tinha seu filho, ele tinha acabado de sair da terra dele, tinha acabado de crer na voz que chama (Deus) e recebe a promessa de que seria Pai de muitas multidões.

 “Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.” 

Essa frase ocorre em um momento onde Abraão estava desanimado com o fato de não haver herdeiro dele e que sua herança e bênção iriam a um filho de um servo (Eliézer). Deus então promete que a descendência de Abraão seria como as estrelas do céu e então crê.

Muitos anos mais tarde (mais de 20) ocorre o episódio descrito por Tiago: “Porventura não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi justificado quando ofereceu sobre o altar seu filho Isaque? 

A harmonização é essa: Abraão primeiro foi justificado somente por crer em Deus (Gênesis 15:6) e então, a partir daí, suas obras começam a exteriorizar (tornar manifesto) a salvação que Ele possuía em Deus, culminando com o capítulo 22 de Gênesis quando ele oferece Isaque sobre o altar (mais de 20 anos depois). Seria impossível a Abraão ser considerado amigo de Deus caso ele não fosse justificado primeiro (Deus lhe atribuiu justiça).

Isso corrobora certas passagens das cartas de Paulo que diz:
“Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus antes preparou para que andássemos nelas.Efésios 2:10

Fiel é esta palavra, e quero que a proclames com firmeza para que os que crêem em Deus procurem aplicar-se às boas obras. Essas coisas são boas e proveitosas aos homens.” Tito 3:10

Algumas objeções fatalmente são levantadas. A mais comum é: “existem pessoas que não creêm em Deus e fazem boas obras, levam vidas que são exemplos a qualquer cristão.”

Essa objeção é verdadeira, infelizmente as vezes isso acontece, porém é aí que o conceito de justificação pela fé somente leva proeminência sobre as obras, pois se as obras tivessem proeminência, o sacrifício de Jesus no calvário seria somente uma parte a mais da salvação, e não o fundamento único. E também é preciso a qualquer ser humano estar em Cristo para fazer algo que Deus considere uma boa obra.

“Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que seja manifesto que as suas obras são feitas em Deus.” João 3:21

Assim como o centurião Cornélio (Atos 10) que era homem justo e piedoso por sua vida porém faltava-lhe aproximar-se da luz (Cristo) para efetivamente ser justificado, toda pessoa que tem um estilo de vida que se doa ao próximo mas não visa a glória de Deus como objetivo de suas vidas, está fardada à perdição se não converter essas boas obras com a fé na morte e ressurreição de Jesus. Efetivamente é a fé antes das obras (não sem) mas antes que nos leva ao céu, pois assim o mérito da salvação dos pecadores está 100% nas mãos de Jesus.

A conclusão é que nunca houve essa história de Paulo x Tiago, os dois agiram concomitantemente para um mesmo fim: mostrar que a salvação pela fé em Cristo Jesus nos leva a prática de boas obras para cumprir Mateus 5:16: “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus. O objetivo da nossa salvação é transformar nossa vida para que mediante a isso nós transformemos as vidas de outras pessoas levando-as para Deus e desse modo, glorificar seu Santo nome.

“Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.” I coríntios 1:30-31

[1] Bíblia de estudo de Genebra

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A Lei de Deus: suas três faces


Um assunto vital nas Escrituras é sobre a Lei de Deus. Poucos assuntos são tão importantes e tão controversos. Um entendimento errado sobre a Lei do Senhor pode fazer com que nós tenhamos um relacionamento errado com Ele. Por isso é importante conhecermos um pouco mais e melhor seus ensinos.

Para tal, precisamos estar certos disso: quando a Bíblia fala na Lei de Deus, ela quer dizer em uma Lei que se divide em três sentidos: sentido pedagógico, sentido civil e sentido moral.

Sentido pedagógico:

Aqui reside a maior confusão que as pessoas normalmente fazem. O primeiro sentido da Lei era puramente pedagógico, ou seja, tinha o intuito de ensinar. Isso fica ainda mais claro quando pegamos a palavra que sempre é usada para a Lei (Torah) que na verdade significa instrução. Deus sempre quis ensinar o ser humano a como viver corretamente. Muita gente acha que a Lei era simplesmente um ritual cerimonialista onde animais eram mortos, sangue era aspergido e comia-se manjares e ofertas. Só que Deus queria basicamente duas coisas: 

Mostrar a incapacidade do ser humano de ser qualquer coisa de bom por si mesmo:

"Mas a Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que, mediante a fé em Jesus Cristo, fosse a promessa concedida aos que creem." Gálatas 3:22

"Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos." Romanos 11:32

"Sobreveio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça;" Romanos 5:20

E acima de tudo, apontar para Cristo:

"Mas, antes que viesse a fé, estávamos guardados debaixo da lei, encerrados para aquela fé que se havia de revelar. De modo que a lei se tornou nosso aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados." Gálatas 3:23-24

"Ora, digo que por todo o tempo em que o herdeiro é menino, em nada difere de um servo, ainda que seja senhor de tudo; mas está debaixo de tutores e curadores até o tempo determinado pelo pai. Assim também nós, quando éramos meninos, estávamos reduzidos à servidão debaixo dos rudimentos do mundo; mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo de lei, para resgatar os que estavam debaixo de lei, a fim de recebermos a adoção de filhos." Gálatas 4:1-5

Deus deu sua Lei (instrução) aos homens para que o mesmo pudesse ter um padrão de vida agradável a Ele enquanto o Salvador não se manifestava na carne. A Lei revela tanto a justiça perfeita de Deus quanto a incapacidade do homem se salvar. Desse modo, a Lei lançou (abruptamente) o homem até Cristo.

Sentido Civil

O segundo uso da Lei é a forma civil. Os padrões morais do antigo testamento foram usados para refreiar o mal por meio de ameaças de castigo, tais como:

"Quem ferir a um homem, de modo que este morra, certamente será morto." Êxodo 21:12

"Se alguém ferir uma pessoa a ponto de matá-la, terá que ser executado." Levítico 24:17

"Se um homem ferir alguém com um objeto de ferro de modo que essa pessoa morra, ele é assassino; o assassino terá que ser executado."  Números 35:16

De fato existem inúmeros versículos não apenas sobre penas capitais, mas sobre relacionamento com o próximo, padrões de governo, forma de lidar com rebeldia, etc. A lei não pode mudar o coração, mas pode conter o mal das pessoas por meio de essas ameaças acima e outras. Assim a lei garante certa ordem e protege os fracos dos abusos dos injustos.

"Ele defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe alimento e roupa. 
Deuteronômio 10:18. 

"Não neguem justiça ao estrangeiro e ao órfão, nem tomem como penhor o manto de uma viúva. 
Deuteronômio 24:17.

Em Romanos 13 vemos que esse principio de Deus governando mediante sua Lei também é verdadeiro:

"Porque os magistrados não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas para os que fazem o mal. Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela;
porquanto ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador em ira contra aquele que pratica o mal." Romanos 13:3-4

Exatamente o mesmo principio visto na teocracia de Moisés é visto também no século I. Deus governa também por meios políticos, por meios de leis civis. Todo cristão legítimo é consciente de que por mais pesadas que são as leis, elas servem (em teoria) para garantir uma nação melhor.

É claro que a vida seria mais leve sem impostos. Mas também o dinheiro para as melhorias de infra estrutura (coisa rara no Brasil) simplesmente não existiriam. A lei civil tem seu fardo, porém é para o nosso bem. Nenhum motorista gosta de pegar sinal vermelho, porém se eles não existissem, ninguém iria querer parar e o trânsito seria um caos.

Sentido moral

O cristão deve obrigatoriamente conhecer a Lei pedagógica e deve cumprir a Lei civil, mas aqui está a mais importante. A Lei moral de Deus sempre existiu, é a revelação de seu caráter santo, perfeito e totalmente equilibrado. Esse caráter foi revelado na Lei mosaica, mas não havia como tornar o homem cumpridor dela. Através de Cristo e de seu Espirito Santo (Romanos 8:3-4) temos o devido acesso a essa retidão moral.

Não devemos achar que não existe mais Lei porque vivemos na graça. O novo testamento diversas vezes fala sobre Lei:

"Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte." Romanos 8:2

"Onde está pois a jactância? Foi excluída. Por que lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé." Romanos 3:27

Não apenas isso, mas existem diversos ensinos sobre santidade, amor ao próximo, casamento, criação de filhos, questões de igreja...tudo isso provém da perfeita lei de Deus, porém existem cristãos até hoje com o argumento falho de que não são cumpridores da Lei, pois estão na graça.

A diferença é que os cristãos não cumprem a Lei para conseguir algo de Deus; os cristãos se esforçam para cumprir a Lei porque foram e são salvos e, com um sentimento de gratidão, querem agradar a Deus de todas as formas. Não obedecemos para sermos abençoados; porque somos salvos obedecemos. Sabemos que fomos feitos para a glória de Deus (Efésios 1:12) e que se não obedecermos a Ele, seremos os mais infelizes de todos os homens. 

Se um peixe sai da água, automaticamente morre; Se um pássaro tenta mergulhar, também. Se o ser humano vive como se Deus não existisse, a parte de sua vontade, automaticamente está morto. Todos fomos criados para a glória de Deus, qualquer coisa fora disso é suicidio. Por isso que o cristão não apenas pode, como deve cumprir a lei. A Lei do amor; a Lei de Cristo.

"Porque em Cristo Jesus nem a circuncisão nem a incircuncisão vale coisa alguma; mas sim a fé que opera pelo amor." Gálatas 5:6 

"A ninguém devais coisa alguma, senão o amor recíproco; pois quem ama ao próximo tem cumprido a lei. Com efeito: Não adulterarás; não matarás; não furtarás; não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De modo que o amor é o cumprimento da lei." Romanos 13:8-10.

Cumprir a Lei fatalmente leva o cristão a amar.