sábado, 1 de dezembro de 2012

Os três pedreiros (parte2)

Continuando a série sobre os pais da igreja protestante, hoje é dia de falar sobre o mais polêmico pedreiro: João Calvino.

      Com a morte de Ulrico Zuínglio, em 1531, parecia que a reforma suíça havia recebido um golpe fatal. O movimento continuou, sob a hábil liderança de Henrique Bullinger, mas possivelmente teria ficado restrito a algumas partes da Confederação Suíça e da Alemanha, sem causar um impacto mais amplo na Europa e no mundo.

 Foi então que entrou em cena um novo personagem, cujo brilhantismo intelectual e habilidade diplomática haveriam de dar profundidade teológica e amplitude continental à fé reformada. Esse personagem foi o reformador francês João Calvino.

Inicialmente, parecia pouco provável que Calvino viesse a se tornar um dos maiores vultos da Reforma Protestante. Nascido em 10 de julho de 1509 na cidadezinha de Noyon, na Picardia (nordeste da França), o menino Jean cresceu em um lar profundamente católico.

 Seu pai era advogado do clero local e secretário do bispo, posição que lhe permitiu obter para o filho um “benefício eclesiástico”, ou seja, um cargo na estrutura da igreja. Aos catorze anos, Calvino ingressou na antiga e prestigiosa Universidade de Paris, visando preparar-se para o sacerdócio.

Estudou a teologia escolástica e as chamadas “humanidades”, isto é, as línguas (especialmente o latim) e a literatura da antiguidade clássica. Por três anos (1528-1531), também se dedicou ao estudo do direito em duas cidades do interior, Orléans e Bourges.

Nesta última, teve a oportunidade de aprender grego com o erudito luterano Melchior Wolmar. Toda esse preparação esmerada haveria de ser muito valiosa para o seu futuro trabalho como reformador.

Regressando a Paris, Calvino dedicou-se à sua grande paixão, os estudos humanísticos, publicando um comentário do tratado Sobre a Clemência, do antigo filósofo estóico Sêneca. Pouco depois, ocorreu o primeiro grande ponto de transição em sua vida – sua conversão à fé evangélica –, sobre a qual existem poucas informações.

No fim do mesmo ano (1533), ocorreu um incidente curioso. Nicolau Cop, um amigo de Calvino que acabara de ser eleito reitor da Universidade de Paris, fez um discurso polêmico em que expôs idéias protestantes e pediu reformas.

As reações foram intensas e os dois amigos tiveram de fugir para salvar a vida. Calvino encontrou abrigo na casa de um amigo em Angoulême, onde começou a escrever a obra notável que o tornaria conhecido em toda a Europa.

Enquanto isso, crescia assustadoramente a repressão estatal contra os protestantes franceses. Calvino retornou brevemente à sua cidade natal em maio de 1534, a fim de renunciar ao seu benefício eclesiástico, e em janeiro do ano seguinte deixou a França, indo residir em Basiléia, na Suíça. Foi ali que ele teve a oportunidade de concluir as Institutas da Religião Cristã, publicando-as em março de 1536.

Tinham como prefácio uma carta ao rei Francisco I, suplicando tolerância em favor dos evangélicos perseguidos. Com essa obra, Calvino foi reconhecido imediatamente com o principal líder e porta-voz do protestantismo francês. Poucos meses depois ocorreria o segundo grande momento de transição na vida do jovem reformador, que teve conseqüências ainda mais dramáticas e profundas.


Em agosto de 1536, Calvino dirigia-se da França para Estrasburgo, onde pretendia residir. Queria tão somente pernoitar em Genebra, na Suíça, e seguir viagem no dia seguinte. Apenas dois meses antes, essa cidade havia abraçado a Reforma Protestante, sob a liderança do ardoroso reformador Guilherme Farel. Este convenceu o jovem autor das Institutas a permanecer em Genebra e ajudá-lo na consolidação do trabalho. Menos de dois anos depois, em virtude de conflitos com as autoridades civis, os dois pastores foram expulsos da cidade (abril de 1538).

Calvino finalmente pode ir para Estrasburgo, onde residiu por três anos e colaborou com o reformador Martin Bucer. Nesse período, pastoreou uma igreja de refugiados franceses, lecionou em uma academia local e casou-se com uma de suas paroquianas, a viúva Idelette de Bure. Também se dedicou a uma intensa atividade literária, escrevendo uma versão ampliada das Institutas, o Comentário de Romanos(seu primeiro comentário bíblico), um tratado sobre a Ceia do Senhor e outras obras. Por insistência dos síndicos de Genebra, acabou retornando para essa cidade em setembro de 1541, ali permanecendo até o final da vida.

Sob a hábil liderança de Calvino e seus colegas, Genebra se tornou a grande cidadela da fé reformada, recebendo refugiados e visitantes de muitos lugares da Europa. Essas pessoas, ao retornarem para os seus países, contribuíram para a ampla difusão do movimento reformado. Um desses refugiados foi o reformador escocês João Knox, que, em uma carta, referiu-se a Genebra como “a mais perfeita escola de Cristo que já existiu sobre a terra desde os dias dos apóstolos”.

 Ao longo dos anos, Calvino ajudou a estruturar a igreja reformada de Genebra, provendo-a de uma constituição, uma confissão de fé, um catecismo e uma liturgia, além de um hinário, o Saltério de Genebra, também idealizado por ele. O trabalho da igreja era realizado por quatro categorias de oficiais: pastores, mestres, presbíteros e diáconos. O reformador também empreendeu um vasto programa de pregação expositiva, ensino religioso e reflexão teológica, que resultou em um enorme volume de publicações. Suas idéias nos campos da dogmática, interpretação bíblica, política, responsabilidade social e outras áreas têm sido influentes há vários séculos.

      Ao contrário do que dizem muitos livros de história, Calvino jamais exerceu cargos políticos em Genebra e muito menos foi o “ditador” daquela cidade. Na realidade, durante a maior parte do seu ministério, ele teve um relacionamento difícil com as autoridades civis. Uma das causas dessas tensões era a sua insistência no sentido de que Genebra fosse uma cidade verdadeiramente reformada, em que os valores da Palavra de Deus se refletissem em todas as áreas da vida pessoal e comunitária. 


 Desde que retornou a Genebra em 1541, Calvino se dedicou a uma intensa atividade em várias frentes, pastoreando, escrevendo e cuidando dos interesses da causa reformada. Esse trabalho se desenvolveu em meio a muitas dificuldades e obstáculos, principalmente os constantes conflitos com as autoridades civis. Algumas das famílias mais ricas e influentes da cidade (os chamados “libertinos”) opunham-se ao seu programa de reformas e elevação dos padrões morais da comunidade.

Essa situação mudou em 1555. Os conselhos municipais passaram a ser constituídos de homens simpáticos a Calvino e os últimos anos da vida do reformador foram mais gratificantes. O ano de 1559 foi especialmente importante, com a ocorrência de três eventos significativos: Calvino finalmente tornou-se cidadão de Genebra (até então era apenas um imigrante), publicou a edição definitiva das Institutas e inaugurou a sua sonhada Academia, voltada para a preparação de pastores, embrião da atual Universidade de Genebra.

Na vida pessoal, o reformador enfrentou diversas provações ao longo desses anos. Em 1549 perdeu Idelette, a esposa dedicada e leal que o havia acompanhado por dez anos. Durante toda a estadia em Genebra, Calvino também lutou com constantes problemas de saúde dos mais diversos tipos. Uma coisa que impressiona os estudiosos é que um homem de saúde tão precária, assoberbado com tantas responsabilidades e desafios, tenha encontrado tempo e disposição para escrever uma quantidade tão impressionante de obras, todas marcadas por grande erudição e profundidade.

João Calvino faleceu com quase 55 anos no dia 27 de maio de 1564. Segundo suas instruções prévias, foi sepultado em um local não identificado. Seu lema de vida, que aparece em muitas de suas obras, mostra uma mão que segura um coração, tendo em volta as seguintes palavras: “Cor meum tibi offero, Domine, prompte et sincere” (O meu coração te ofereço, ó Senhor, de modo pronto e sincero). 

Desde que me propus a escrever sobre ele, meu principal objetivo foi o de esclarecer alguns mitos (muitos fantasiosos) sobre ele, aqui estão alguns:

Mito: Calvino inventou a doutrina da predestinação.
Fato: Entre outros, Agostinho, Anselmo, Aquino, Lutero e Zwinglio ensinaram e escreveram sobre a doutrina da predestinação antes de Calvino, enfatizando a livre graça de Deus triunfando sobre a miséria e escravidão ao pecado.
Mito: A doutrina da predestinação é central na teologia de Calvino.
Fato: Em seus escritos, especialmente nos comentários, Calvino trata do tópico quando o texto bíblico exige. E como alguns eruditos têm sugerido, o tema central de sua teologia parece ser a união mística do fiel com Cristo.
Mito: Calvino não tinha interesse em missões.
Fato: Entre 1555 e 1562 um total de 118 missionários foram enviados de Genebra para o exterior – um número muito superior ao de muitas agências missionárias da atualidade. E os primeiros mártires da fé evangélica nas Américas foram enviados por Calvino ao Brasil para encontrar um lugar de refúgio para os reformados perseguidos na Europa e evangelizar os índios.
Mito: A crença na predestinação desestimula a oração.
Fato: Calvino escreveu mais sobre a oração do que a predestinação nas Institutas, enfatizando a oração como um meio de graça por meio do qual a vontade de Deus é realizada e suas bênçãos são derramadas.
Mito:Calvino é o pai do capitalismo.
Fato:As forças que moldaram o capitalismo moderno já estavam presentes na cultura ocidental cerca de 100 anos antes da reforma. O que Calvino valorizou em seus escritos foi o estudo, o trabalho, a frugalidade, a disciplina e a vocação como meios de superar a pobreza. Ele não condenou a obtenção de lucros advindos do trabalho honesto.
Mito: Calvino foi o ditador de Genebra.
Fato: Ele tinha pouca influência sobre as decisões acerca do ordenamento civil da cidade e não tinha direito de voto em decisões políticas ou eclesiásticas no conselho municipal. Sua influência era persuasiva, por meio de seus sermões e escritos. Em países influenciados pelo pensamento calvinista não surgiram ditadores, nem nas esferas políticas muito menos nas eclesiásticas.
Mito:Calvino mandou matar Miguel Serveto.
Fato: Serveto foi executado por ordem do conselho municipal de Genebra por heresia, especialmente por negar a doutrina da Trindade. Ele havia sido condenado pelas mesmas razões por dois tribunais católicos, só escapando da morte por ter fugido da França. Inexplicavelmente ele foi para Genebra. No fim, todos os reformadores europeus apoiaram unanimemente a decisão do conselho de Genebra.
Mito: Os ensinos de Calvino são social e politicamente alienantes.
Fato: Pode-se ver a influência do pensamento de Calvino na revolução puritana de 1641 e na primeira deposição e execução de um rei tirano em 1649, na Inglaterra; no surgimento do governo republicano (com a divisão e alternância do poder, além de ênfase no pacto social); na revolução americana de 1776; na libertação dos escravos e na defesa da liberdade de imprensa.
Mito: Calvino não tinha interesse em educação.
Fato: Calvino não só inaugurou uma das primeiras escolas primárias da Europa como ajudou a fundar a Universidade de Genebra, em 1559. Algumas das mais importantes universidades do ocidente, como Harvard, Yale e Princeton foram fundadas por influência dos conceitos educacionais do reformador francês. A imagem permanente associada às igrejas reformadas é que estas sempre têm uma escola ao lado.
Mito:Os ensinos de Calvino não são bíblicos.
Fato: Calvino enfatizou fortemente a autoridade e prioridade das Escrituras e praticamente inaugurou o método histórico-gramatical de interpretação bíblica. Escreveu comentários sobre quase todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, além de milhares de sermões. E sua grande obra foi as Institutas da Religião Cristã, que seria “uma chave abrindo caminho para todos os filhos de Deus num entendimento bom e correto das Escrituras Sagradas”. O reformador francês lutou para que toda a sua cosmovisão estivesse debaixo da autoridade da Bíblia.